Não estamos diante de uma liturgia, mas diante do desnudamento de Deus. A Quinta-feira Santa não é um rito, mas um grito – o grito silencioso de um amor que se aniquila até o último extremo. Cada gesto, cada palavra da Missa da Ceia do Senhor não é um símbolo, mas uma incisão na carne da história, um rasgo no véu do que chamamos de "normalidade sagrada".
1. O sangue que faz passar, mas não passa
O cordeiro imolado no Egito não era um sacrifício religioso – era um ato de guerra. O sangue nos umbrais era um sinal de que aquela casa havia escolhido a liberdade, mesmo sob a espada do opressor. A Páscoa judaica não era uma cerimônia para manter o status, mas um sinal de ruptura com o domínio do faraó.
Cristo, o novo Cordeiro, não derrama seu sangue em um ritual piedoso, mas em um linchamento público. Sua entrega não é apenas um ato de obediência ao Pai, mas uma declaração radical contra os sistemas que esmagam a dignidade humana. Na Eucaristia, não há um escape místico, mas a assinatura de uma sentença de morte – a que Ele aceita, e a que nós, ao comungar, também devemos assinar: morrer para o mundo, para o ego, para a lógica do poder.
Assim como o sangue nos umbrais das casas hebraicas impedia o anjo da morte de entrar, o sangue de Cristo nos impede de permanecer mortos em nossas seguranças. Mas onde está o sangue do Cordeiro em minha vida? Não nos batentes de minha religião, mas nas portas escancaradas de minha vulnerabilidade? (mudar)
2.O memorial do esquecimento
"Fazei isto em memória de Mim" – mas qual memória? Não a de um fato histórico distante, mas a memória perigosa de um Deus que se deixa mastigar. O verbo grego "anamnesis" não significa apenas recordar, mas tornar presente. A Ceia do Senhor não é um teatro simbólico, mas a atualização real da entrega de Cristo (KONINGS, 2004).
A Igreja primitiva chamava a Eucaristia de "pharmakon" – remédio e veneno. Remédio para os que creem e se deixam transformar, veneno para os que a recebem sem se permitir despedaçar por ela. Quando Paulo adverte sobre "comer e beber indignamente", não fala de pureza ritual, mas da incapacidade de reconhecer no pão partido o próprio corpo daqueles que esmagamos com nosso egoísmo.
Se comungo sem transformar minha vida, bebo não a salvação, mas a condenação. Se levanto o cálice, levanto também o sangue dos esquecidos? Ou bebo minha própria religião como um vinho que embriaga de falsa santidade?
3. A sabedoria que Lava os Pés
O lava-pés não é um "gesto bonito". É um escândalo teológico. O Evangelho de João, ao invés de narrar a instituição da Eucaristia, nos apresenta um Deus de joelhos. No lugar do "isto é o meu corpo", vemos o "isto é o meu serviço" (RATZINGER, 2007).
Enquanto discutimos hierarquia, Ele desce. Enquanto construímos altares, Ele desce. Enquanto nos preocupamos com a doutrina, Ele toca a sujeira humana. O mesmo Verbo que disse "Eu Sou" agora diz "Eu Sirvo". E não serve por obrigação, mas por essência – porque Deus, em seu íntimo, é servo.
Quantas teologias eu construí, enquanto Cristo espera que eu lave apenas um pé? Um só. O do que mais me repugna.
4. O Deus que foge do templo
Quando o Santíssimo é levado ao altar da reposição, não é um "depósito". É um êxodo. O mesmo Cristo que fugiu quando queriam fazê-lo rei (Jo 6,15) agora foge do nosso desejo de encerrá-Lo em belas liturgias. Ele não quer ser um Deus domesticado, preso em templos dourados, mas o Deus que caminha para o Getsêmani, para o suor de sangue, para a solidão absoluta da cruz.
A adoração noturna não é veneração, mas vigília de morte. Estamos diante de um Deus que escolheu o fracasso como única estratégia. Ele não quer aplausos, quer companhia.
O que farei com esse Deus que se recusa a ser controlado? Continuarei a adorá-Lo em meus esquemas, ou O seguirei até o deserto de Sua solidão?
A noite em que Deus se fez clandestino
Esta noite não é sobre o que fazemos, mas sobre o que Ele fez de Si mesmo:
· Pão – não um alimento sagrado, mas um corpo esfacelado para os famintos de sentido.
· Servo – não um exemplo moral, mas a negação radical de todo poder.
· Fugitivo – não um ausente, mas um Deus que só é encontrado onde não O buscamos: na sarjeta, na cela do presídio, no leito do hospital.
A Ceia do Senhor é a anti-liturgia. Ela não nos deixa confortáveis em nossas celebrações, mas nos arrasta para onde não queremos ir: para a cruz que há em cada esquina, em cada relação, em cada escolha entre o poder e o joelho lavador de pés.
"Tomai e comei. Tomai e bebei. Mas saibam: isto não é um rito. É a minha vida. E agora, a vossa."
Referências
BÍBLIA. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2001.
KONINGS, Johan. A Bíblia e sua interpretação: Introdução ao estudo da Sagrada Escritura. São Paulo: Loyola, 2004.
RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré: Da entrada em Jerusalém até a ressurreição. São Paulo: Planeta, 2007.